A reforma passou. E agora, José?

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A Reforma passou. E agora, José?

Noa Piatã Bassfeld Gnata

Publicado originalmente no portal Carta Capital, em 30 de outubro de 2019

Esta semana marcou o fim de mais uma extenuante jornada de discussão sobre a reforma da previdência, que consumiu a agenda das entidades representativas de servidores públicos, dos trabalhadores em geral, do setor produtivo e do mercado financeiro desde dezembro de 2016, quando da propositura da PEC 287/16, ainda pelo governo Temer, até a derradeira aprovação da PEC 06/19 proposta pelo governo Bolsonaro.

De fato e concreto, enquanto disputaremos os parâmetros de constitucionalidade dos efeitos das normas de constitucionalidade duvidosa (as há no texto), resta a bancários, magistrados,  procuradores, médicos, carteiros, professores, servidores públicos de todas as faixas salariais, em início, meio ou em fim de carreira – ou mesmo aposentados – não contar com nossas astúcias e certificarem-se, cada uma e cada um, da própria posição no contexto da reforma, e decidir o que fazer diante dela.

Em regra, está claro que a reforma implica o atraso da aquisição do direito ao benefício, a diminuição do seu valor efetivo e o aumento das contribuições previdenciárias.

Mas algumas recomendações podem ser valiosas para que se possa evitar, pela forma mais eficaz possível, a vulnerabilidade econômica no futuro.

Para quem está começando, a mensagem é das inúmeras pessoas que lamentam não terem, na juventude, dado valor para a formalização de vínculos de emprego, a reunião de documentação para comprovação futura de trabalhos informais, para o recolhimento de contribuições como profissionais liberais ou, quando possível, para a formação de reservas na previdência complementar.

A contratação de plano de previdência complementar, somada às de seguros privados por doença, invalidez e morte, conjugados, custa mais caro e em regra paga benefícios menores que a previdência social. Isso porque, em razão da base diversificada de custeio, as contribuições à Previdência Social são calculadas, em regra, em 31% desse valor justamente para terem capacidade de entregar, ao final de cerca de 35 anos de tempo de contribuição, renda de aposentadoria proporcional aos salários da atividade.

O que ocorre, na prática frequente, para grande parte dos poucos que conseguem fazer aportes na previdência complementar, é a fixação de mensalidade total desses contratos não superior a 10% da renda mensal e, mesmo apesar de todo esforço, uma ruptura do compromisso previdenciário no meio do caminho, com a utilização dos saldos para aquisição de imóveis ou decisões de consumo, como o ensino superior de filhos. É comum, também, a cessação das contribuições para seguros de invalidez e morte em fases mais apertadas, em regra com perda de todos os aportes feitos antes disso.

Então, a importância de se reivindicar a regularidade da situação previdenciária em qualquer relação de trabalho de que se faça parte, bem como de fazer contribuições espontâneas quando efetivamente se trabalha como autônomo, prioritariamente para a previdência pública, segue sendo, apesar de velho, aviso valioso. No Chile, que está em chamas enquanto aprovamos nossa reforma, a privatização da previdência social levou a rendas de aposentadorias 65% menores que os últimos salários da vida de trabalho.

Quanto aos que ingressaram no serviço público depois da limitação das contribuições no valor do teto do regime geral, a recomendação, em geral, é para que optem pela previdência complementar fechada ou associativa disponível, pois via de regra não tem fins lucrativos, o que reflete em custo efetivo menor do que a previdência aberta (bancos e seguradoras). Recomenda-se ainda que a adesão se dê apenas até o limite da contribuição previdenciária com contrapartida financeira no regulamento, conjugada com aportes para a previdência aberta até o limite da isenção do imposto de renda. Nesta seara, é importante nunca confundir os conceitos de previdência (em seu longo prazo de indisponibilidade para constituição de renda) e de investimentos (que sempre prometerão rentabilidade mais alta, que nem sempre se confirmará).

Quem está no meio do caminho, entre os 35 e os 50 anos de idade, foi pego em cheio pela reforma, com aposentadorias mais tardias e em valores mais baixos. Afasta-se tanto mais da ideia de aposentadoria quanto mais irregular tenha sido o histórico contributivo até aqui. Isso afeta profissionais liberais de várias faixas de renda distintas, que se acostumaram com padrão de consumo que acaba comprometendo toda a receita. É imprescindível voltar aos trilhos e avaliar a possibilidade de comprovação e regularização de vínculos de trabalho e/ou remunerações antigos e retomar contribuições regulares.

Especialmente em relação aos servidores públicos federais nessa faixa etária, faz sentido avaliar desde logo o interesse na opção pela limitação das contribuições oficiais ao teto do regime geral, com adesão ou não ao plano oferecido pela União, tendo em vista o prognóstico de reabertura do respectivo prazo na redação da PEC paralela, que deve ser aprovada na sequência da reforma. A utilidade dessa opção é maior para aqueles com maior benefício especial (renda proporcional estabelecida em lei para quem optar por se submeter a esta limitação) combinado com longo tempo contributivo pela frente até a aposentadoria, por exemplo quem já trabalhou 20 anos e em razão da reforma terá que trabalhar mais 20, mas os casos concretos revelam prejuízo provável ou certo em inúmeras situações.

Quem estava quase se aposentando deve avaliar as regras transitórias, tanto no regime geral quanto no regime próprio, que tentam suavizar a dureza da reforma. São diversos casos de pessoas que se prejudicaram por poucas semanas ou meses, e precisarão pagar pedágios de alguns ou vários anos até obter, finalmente, a aposentadoria. Para estas pessoas, pode haver utilidade de comprovação ou indenização de vínculos antigos, que antecipem o direito adquirido para data anterior à da vigência da reforma, garantindo-se aposentadoria com base nas regras de idade, tempo de contribuição e de cálculo mais vantajosas. No caso dos servidores públicos, como a paridade e a integralidade só se garantem após as idades de  62 e 65 anos, é de se questionar a relevância de esperar pelo alcance dessas prerrogativas, pois o critério do reajuste anual poderá mostrar-se mais interessante que a paridade em longo prazo, e a média das remunerações históricas nem sempre é inferior à última remuneração.

Quem já está aposentado, por sua vez, via de regra não será prejudicado diretamente pela reforma. Aqueles que continuam trabalhando mantêm o dever legal de continuar contribuindo, sem contrapartida e sem a expectativa de formação de novos direitos, sendo irresponsáveis as promessas de restituição judicial das respectivas contribuições. Os servidores públicos aposentados, entretanto, assim como todos os ativos, sofrerão aumento da alíquota da contribuição previdenciária para até 22%, com a possibilidade de instituição de contribuições extraordinárias para equacionamento de déficit em alíquotas imprevisíveis. Isto importa violação, oblíqua, porém direta, à garantia constitucional da irredutibilidade de vencimentos e proventos. Enquanto a discussão de seu caráter confiscatório estiver correndo nas instâncias superiores, implicará a redução efetiva das aposentadorias.

Falando nelas, as contribuições extraordinárias para equacionamento de déficit já têm sido uma dura realidade, por sua vez, para os aposentados pelos planos de benefício definido dos fundos de pensão dos bancos e estatais. O que parece evidente neste tema é a pouca disposição dos fundos para buscar a responsabilidade civil de seus patrocinadores no contexto dos saldamentos e equacionamentos de déficits. Os prejuízos vão desde a impossibilidade de buscar reflexos na previdência complementar de alterações salariais percebidas em reclamatórias trabalhistas, em razão da jurisprudência em formação no STJ, passam pela necessidade de recálculo dos benefícios proporcionais de planos saldados e, ainda, pela reivindicação, pelos representantes dos patrocinados, da legitimidade do direito de regresso nunca exercido pelos fundos de pensão nas hipóteses de responsabilidade.

Para além dos reflexos diretos nos direitos individuais, o processo de reforma da previdência reflete o projeto de sociedade que temos em construção e a tensão política latente nos últimos trinta anos.

Contaminado pelas circunstâncias conflituosas da ruptura do governo Dilma e da eleição de Bolsonaro, o último capítulo a que assistimos dessa série não se isolou de uma avalanche discursiva que atropela premissas fundamentais da economia do trabalho.

Tais premissas estabeleceram as condições de manutenção e sedimentação da classe média urbana formada no século XX, cristalizadas no texto constitucional de 1988. A ordem social-democrata arquitetou a tentativa de viabilização de uma economia capitalista mediada pela imposição de obrigações solidárias, traduzidas em tributos que, no que concerne à organização do trabalho, buscaram realizar a lógica da acumulação e da propriedade – a moradia por meio do FGTS e do SFH – e da renda independente do trabalho atual – por meio da previdência social. Com estes artifícios, as trabalhadoras e trabalhadores poderiam, de alguma forma, acumular patrimônio e renda, mesmo que não conseguissem guardar dinheiro durante a vida.

Como se a “economia” não fosse a economia do trabalho, como se fosse apenas e tão-somente a expectativa do mercado financeiro, e para legitimar a retomada a fórceps do poder central, criaram-se narrativas contaminadas pela estigmatização negativa de qualquer afã trabalhista, desprezando as históricas e inúmeras demonstrações técnicas e experiências políticas de que o novelo de proteção social, especialmente nos países tidos como periféricos, é condição sine qua non de possibilidade da manutenção da classe média, do mercado de consumo, da produção industrial e do próprio desenvolvimento do mercado financeiro. É condição de reprodução da produção do país.

Removendo-se as bases da proteção social, atribuindo-se ao mérito de cada um a capacidade de acumulação e mantendo-se inférteis as condições de possibilidade de iniciativa e sucesso na lógica meritocrática, as maiorias seguirão convivendo com a lógica salarial ou com a culpa pelo fracasso na lógica da iniciativa autônoma, ou seja, com a dificuldade ou impossibilidade de acumulação de capital para geração de renda futura.

A restrição de acesso à relação jurídica de emprego e às aposentadorias, e os valores destas cada vez mais insuficientes para a vida na cidade, revelará o que a própria existência dos direitos sociais tentou ocultar nas últimas décadas: os dados rasos da macroeconomia maquiam as avaliações sobre o desenvolvimento econômico e social, contrastando o alto desempenho dos oligo e monopólios privados da produção e exportação de commodities e na infraestrutura (organizados e garantidos pelo próprio Estado nos setores estratégicos, que absorvem e acumulam fatia imensa da riqueza produzida no país) com o progressivo empobrecimento da classe média e o crescimento da desigualdade social.

Mas nada disso é novidade, e está entre aquilo que todos os avisos não evitaram. O prelúdio, após o trabalho político extenuante que todas as entidades associativas tiveram durante o processo legislativo, é da necessidade de defesa firme do direito escrito, desde a ordem constitucional e legal dos regimes geral e de servidores públicos, até as minúcias dos regulamentos dos planos de previdência complementar. No âmbito legislativo, agora, a atenção é para a técnica de regulamentação da reforma, que implicará a revogação de diversas normas das Leis nos 8.112/90 e 8.213/91, entre outras, para que tenham substituição adequada. É nesses detalhes que se criaram as controvérsias judiciais que alimentam as massivas estatísticas do judiciário.

A existência da previdência pública garante algo da essência do sistema meritocrático: a maioria vai perder. Na lógica do mérito, a derrota da maioria não é provável, é certa, se a expectativa de sucesso for de acúmulo de capital capaz de, por si, gerar renda livre. E o direito precisa se organizar para viabilizar a existência digna de quem não terá condições de realizá-lo, como meio de organização da uma sociedade civilizada.

Ainda que se possa encontrar a vitória e a virtude ou em algum critério de moralidade, ou no alcance de algum poder aquisitivo, ou mesmo na alienação nos sentimentos de pertencimento, como a religião, o afeto, o carnaval e o futebol, como por acaso faz a massa flamenguista nesse flamejante final de ano na América Latina, é importante reconhecer que nós todos perderíamos, entretanto, se perdêssemos o sistema público de proteção previdenciária, nessa competição invencível para toda a gente que vive do salário.

Ao menos para o momento, a luta contra a privatização geral da previdência teve uma importante vitória. Paulo Guedes perdeu. A despeito de cada medida que cada um pode individualmente tomar para prevenir danos e otimizar renda de aposentadoria ou de capital, quando possível, um denominador comum determinante está no plano coletivo. O que temos a fazer é retomar um projeto político de convivência, como condição para o desenvolvimento econômico e social e a garantia plena do gozo privado das liberdades individuais.

Esse projeto depende mais da renovação do pacto social, da ressignificação do marco constitucional e da oxigenação e valorização da Previdência Social e menos dos podcasts dos coaches financeiros, pois a acumulação robusta capaz de gerar formação de renda de capital não está e não estará disponível para a classe média (mesmo quando bem) assalariada. Dizer para alguém cercado por boletos que os investimentos em fundos multimercado rendem mais que a poupança é o mesmo que sugerir à população faminta que se sirva de brioches. Já deu errado uma vez.

NOA PIATÃ BASSFELD GNATA

Advogado previdenciário em Curitiba. Mestre e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Integrante da Rede Lado. Professor em cursos de especialização em Direito Previdenciário.

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